sábado, 10 de dezembro de 2016

Uma noite de Baobab pelos dias de trabalho no Sudeste Asiático

Singapura Fev 2004.

A vida a trabalho fora do país é uma mistura de sentimentos, inúmeras barreiras e oportunidades. Aqui relato uma rica experiência cultural em uma cidade singular.

Baobab é a uma das mais emblemáticas e majestosas árvores da savana Africana, também conhecida com árvore da vida, vive por centenas de anos. Senhora e testemunha das épocas que transcorrem a sua sombra, impávida, mesmo que lhe cortem o tronco, as suas raízes insistem em crescer e dar-lhe vida novamente.

Paradoxalmente na quarta-feira de cinzas fui ter meu primeiro contato, ao vivo, com a música Africana, mais precisamente de Dakar no Senegal.

Munido de várias boas referências e do gosto pela novidade comprei o ingresso para assistir e ouvir a Orchestra Baobab: 10 senhores da melhor estirpe negra que misturam ritmos africanos e cubanos. O nome Orchestra pode dar a falsa impressão de que eles entram de smocking e tocam sentados com toda a cerimônia que a uma orquestra convém. Não, definitivamente não é o caso. Eles vestem batas brancas até abaixo do joelho e alguns dançam todo o tempo. Chico César já disse: “deve ser legal ser negão no Senegal...”

As melodias predominantemente são dançantes, mas existe também espaço para os vocais intensos e alguns lamentos. Sim, nada mais originalmente africano que o Blues.

Descaradamente copiando do programa que apanhei na entrada, posso confessar minha total ignorância em não saber a diferença entre o Jola, Manjak, Mandika, Balanta e Português-Creole.

A melodia do Obaobab, além da veia Senegalesa, passeia por tons do Buena Vista Social Club - Compay, Ibrahim Ferrer, Omara Portundo -  Célia Cruz.

A música do grupo revela algumas passagens e paisagens que lembram boleros e músicas do caribe as quais desde pequeno escutava na radiola lá de casa embalado pelos discos do pai ou das cantilenas da mãe na cozinha.  

Por um momento até a vocalização de Pena Branca e Xavantinho e um lamento caipira pairou no meu ouvido. Tudo bem, eu confesso que tomei uma cervejinha antes de sentar e saudoso do carnaval as possibilidades de conexões se potencializam.

Por falar em frutos da pátria amada, o Gilberto Gil vai se apresentar por aqui em Março. O anúnio no folder nos enche de orgulho, merecimento da beleza das suas canções. No jornal de sexta-feira o anúncio na capa do caderno cultural: “Brazil’s Minister of Sound”.

Eis que no sábado estava eu dirigindo pelas canhotas como um autêntico inglês quando na rádio anuncia o show vindouro do Gil e um aperitivo por conta disto. A música começa e já de saída o detalhe: quem a cantava é Caetano Veloso. Ao final o sujeito com dificuldades tropeça no nome dá música e insiste nos detalhes reforçando o convite para show do Gil. Ao volante, quase causo um desastre entrando na mão errada.

Após duas horas o show do Baobab terminou. Anexo ao teatro e as margens do rio Singapura, já com a alma alimentada, fui dar satisfação ao meu estômago tão maltrado pela comida chinesa da cantina do escritório. É a ditadura do chicken, do noodle e do molho de soja picante. Quando não é um é o outro ou a combinação dos três.

É impressionante, mas no buffet você vai perguntando e é aquela sinfonia: chicken curry, chicken chopped, chicken sliced e outros chicken que os parta.  Seria uma perseguição ou Karma? Como se não tivesse bastado a chickenpox, a catapora que me martelou a cara de buracos nos meses de trabalho nos EUA, me isolando do mundo por 15 dias.

Voltando as margens do rio, a escolha dentre os vários restaurantes e as suas mesas a céu aberto é, em total sintonia, por um bife com molho Cajun se ensaiando de Nova Orleans.

Há dias sinto falta de ti - oh carne de vaca, vermelha, sem gripe ou tosse de qualquer natureza.  Ando de tal forma desacorçoado que poderia adjetivar a carne de vaca por horas a fio. Mas com ressalvas: eu quero carne sem aquela profusão de pimenta dos infernos. Vocês não imaginam, mas é de doer. E aqui não cito passagens filosóficas.

Dias destes comi uma pimenta inteira achando que era um quiabo.  A dentada foi aquela cheia de naturalidade e confiança. Visto a bobagem e o espanto de todos à mesa, não me dei de rogado e mandei a pimenta para dentro. Não sei de onde tirei que ia achar um quiabo aqui deste lado do mundo. Por acaso vocês já ouviram falar de algum chinês que come quiabo feito mineirinho? Eu também não. Bom, por conta chorei em dois tempos bem distintos.


Após o jantar, emocionado, elevei a categoria daquele bife a steak. Tomando por rumo a saída do anexo do teatro, me deparei com um som familiar no Harry’s Bar Esplanade, ainda carente de público. 

Um grupo de não asiáticos, mas de origem não brasileira, tocava ao vivo, Jorge Benjor:
“ - mas que nada um samba como este tão legal… ô,ô,ô,ô,ô, ariá raiou, obá, obá, obá …”

Na quarta-feira de cinzas em Singapura era noite de Obáobá.


domingo, 23 de outubro de 2016

Navegar aqui é preciso - relatos sobre uma cidade singular

Extraido de email enviado de Singapura em Fev 2004

Caros amigos.

Pouco tenho escrito e enviado e-mails. Meu notebook está com a fax/modem “queimada”.

Perdoado por isto escrevo uma overdose de notícias para dar as novas aqui, do outro lado de lá.

Plano de trabalho acordado com cliente, mala arrumada, passagem, trâmites burocráticos e estadia fechada para os meses que virão. Então, semana passada aterrissamos em Singapura tendo por informação apenas o trivial sobre o país e a cidade: uma pequena, moderna e rica ilha ao sul da Malásia.

Eis que chegamos ao destino, 32 horas depois da partida, 10 horas de fuso de diferença e uma dor na perna que não sei o quanto se deve ao voo ou a idade.
No aeroporto, apesar de discreta, já notamos a preocupação com a SARS monitorada por um sistema sensor de calor corporal. Na imigração somente mulheres fazem o controle. Viva a desigualdade de oportunidades. Em geral as mulheres são mais compreensivas o que me deu mais esperança de obter o visto de entrada sem aquela “cordialidade” típica da imigração americana.

Dito e feito. Tudo foi muito fácil e simples. Até balas estavam lá oferecidas ao visitante, o que já aproveitei para disfarçar o gosto de fuselagem.

O clima equatorial não nos deixa esquecer do calor e da umidade constante e do generoso verde das avenidas ladeadas de árvores de copas largas e coqueiros. A ilha realmente é muito moderna, o que não deixam dúvidas seus edifícios.  

A influência britânica é notória seja ela nos ônibus de dois andares, no volante do lado direito ou no noticiário esportivo recheado da primeira liga do futebol britânico. Claro, talvez por isto Singapura ainda não tenha uma boa seleção nacional. Assim nunca irão aprender direito.

Tudo aqui é muito organizado, seguro e limpo com exceção das poucas “praias” que nada verdade inexistem. Guimbas de cigarro e plástico não se encontram nas ruas, mas facilmente nas tristes e poucas areias daqui.

Possuir carro por aqui não é uma ideia que possamos chamar de econômica. Eles são caríssimos e existe um pedágio eletrônico que funciona no horário comercial nas áreas mais centrais. Todo carro tem um equipamento eletrônico que funciona com um smartcard o qual é debitado e que pode ser recarregado em postos, ATMs e em qualquer loja, desde que seja a 7-Elevem (!).

O transporte público parece bom e o taxi tem preços razoáveis. Claro sempre desconsiderando a conversão para o Real. Os impostos são baixos, a economia parece saudável com muitas empresas de Tecnologia e eletrônicos. O porto, recheado de containers, denuncia a vocação de Singapura como um dos mais importantes hubs da Ásia.

Agora o que não se perdoa é o preço da cervejinha que faz qualquer jantar mais etílico parecer um banquete. E isto entristece a gente por demais.

Difícil identificar o singapurense. Aqui é uma babel de orientais, chineses, malaios, indonésios, japoneses, indianos, árabes e por assim vai. A população fixa é de cerca de 3 milhões e, acreditem, uma parte flutuante 2 milhões O inglês é uma das línguas oficiais mas muitas vezes você não entende nada do que estão falando. Eles falam o SinEnglish, um inglês com toques locais, mas o pior são os chineses. Como já tinha confidenciado a alguns, me sinto o jipe da Nasa passeando em Marte.

A gripe do frango ainda não chegou por aqui mas ao menos nos jornais locais toma sempre a primeira página e quase todos os dias. Assim sendo tenho evitado galinha da região (sic).

Sir Stanford Raffles, o patriarca da Singapura moderna, dá nome para tudo: hotel, rua, shopping, busto na praça etc. O Hotel que estamos tem em torno de 1200 aptos, localiza-se na Stanford road, tem o codinome Stanford e faz parte de um complexo chamado Raffles City. No local se encontra um central de metrô, um segundo hotel chamado Raffles Plaza e um shopping de mesmo nome.

Do outro lado da rua um belíssimo hotel de fachada vitoriana datado do século 19 e que é um dos mais tradicionais do país. Nome? Raffles Hotel. Zonão aqui é proibido, de tal sorte que não tenho esperança de encontrar nenhuma blasfêmia ao tão nobre Sir Stanford.

Ontem fomos conhecer um local chamado Fisherman’s Village. Descobrimos que ele ficava no Pasir Ris Park.  Para chegar lá passamos por uma avenida chamada Pasir, uma rua chamada Pasir e uma outra dezena de ruas numeradas Pasir drive 1, Pasir drive 2 etc. Perto do escritório onde trabalhamos existem as Clementis avenue, Clementi road 1, Clementi road 2 etc. Começamos a desconfiar que este negócio de nome é uma mania local.

Não há do que se queixar da civilidade daqui. Domingo pela manhã, correndo pelo vazio centro financeiro da cidade, o sol e a umidade castigaram minha já debilitada forma física.  A versão hight-tech da arquitetura de concreto, vidro e aço dos edifícios imensos e um rio de dimensões pequenas compõem a paisagem.

Ao largo, uma rua repleta de bares hora vazios. Defronte, senhores a beira do riozinho realizam uma improvável e tranquila pescaria. Um casal de turistas ocidentais namoram e escolhem as melhores poses para as fotos enquanto uma velho acomodado em um cilindro de concreto perde seu olhar no rio. Expectador desta cena toda poderia até cair dentro do rio que provavelmente um submarino nuclear a espreita poderia aparecer do nada e me resgatar.

Contudo é impossível não notar uma falta de identidade local, talvez muito motivada pela sua juventude e característica global. Outra possibilidade é a parcialidade de nossa visão ocidental e latina, ignorante das diferenças culturais do oriente. Mas observando cuidadosamente, com raras exceções, não sentimos a alma que a história empresta as casas, aos prédios e as pessoas.


Pelo que ouvi sofrem dos quase-vizinhos australianos a mesma desconsideração que os americanos reservam “carinhosamente” aos mexicanos.

Em Singapura a racionalidade regra e a mudança é tão veloz que fica previsível em si mesma.
Sua vocação é estar conectada a quase tudo no mundo todo.

Por causa disto seus barcos ancoram menos do que viajam.

Paulo